Atitude LGBT Social

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A cura da homossexualidade
Tratamento anti-gay é retrocesso histórico
Em "História da Sexualidade", o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) nos conta como a sexualidade passou a ser domínio de várias tecnologias de saber e poder, tais como a medicina, a psiquiatria e a psicanálise. Desse modo, o autor demonstra como o sexo que antes era concebido como um ato para se obter prazer, passa a ser disciplinado e normatizado, definindo quais práticas eram consideradas normais e quais eram consideradas patológicas.

Isso ocorreu devido a fomentação do discurso sobre sexo, sobretudo a partir do século XVIII. Era necessário falar de sexo, era preciso saber quais práticas, quais desejos, quais fantasias, quais discursos e quais formas eram usadas para se obter prazer para que se pudesse controlá-lo.

As "confissões da carne" passaram então do registro jurídico e da moral cristã, para o controle da medicina psiquiátrica. Foi o momento em que se deu uma verdadeira "caçada às sexualidades periféricas", onde o homossexual do século XIX passa a ser um personagem digno de observação, análise, controle e correção. Nascia assim, a idéia de que os homossexuais eram pessoas que haviam saído da norma (primeiro, a que foi imposta pela igreja e pelos valores morais e sexuais da época, depois, pelo crivo da medicina que dizia o que era permitido e o que era proibido em matéria de sexo - uma verdadeira ortopedia sexual).

De acordo com Foucault, a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade, constituiu-se como um tipo de relação sexual onde a idéia de masculino e feminino estariam invertidas, visto que homens e mulheres, tanto moralmente, quanto anatomicamente, haviam "nascido" para se completarem. A prática de sodomia (relações sexuais anais entre homens ou entre homens e mulheres) era condenável moralmente e constituía uma identidade, qual seja, a do "sodomita". O homossexual ganha uma identidade quando a sexualidade passa a ser domínio da medicina psiquiátrica da época, que o definia como portador de um "hermafroditismo da alma". Saía de cena o sodomita, entrava em cena o homossexual, cujo desejo e prazer são passíveis de cura.

Do século XIX até os nossos dias, a homossexualidade foi investigada e vítima dos mais diferentes tratamentos que a medicina psiquiátrica dispunha. A homossexualidade também foi colocada no divã para ser analisada por um certo Dr. Sigmund Freud, que apesar de considerá-la uma "parada no desenvolvimento sexual" (a partir da teoria do Complexo de Édipo), foi veemente contra toda e qualquer ação no sentido de demover o desejo sexual dessas pessoas. Ela ainda foi estudada por antropólogos e sociólogos nos estudos culturais e etnográficos, e apenas na década de 70 é que se observou uma mudança: em 1973, a Associação Psiquiátrica Americana retirou a homossexualidade da lista de transtornos mentais, decisão essa que foi seguida pela Associação Americana de Psicologia, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial de Saúde.

Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia, emitiu uma resolução (Resolução 01/99) proibindo expressamente qualquer psicólogo de fornecer tratamento a qualquer sujeito autodenominado homossexual no sentido de promover sua "cura".

Apesar de haver esforços para naturalizar a homossexualidade como mais uma faceta da nossa subjetividade, ainda encontramos pesquisas genéticas que insistem em encontrar um "gen" da homossexualidade. Não acredito que este "gen" exista, e se for algum dia for encontrado, pouco poderá dizer sobre as ações morais e os desejos afetivos e sexuais da maioria de sujeitos, hetero, homo, bissexuais, ou qualquer outra espécie sexual que haja nos dias de hoje ou amanhã.

Não é a toa que tem promovido grande comoção por parte de profissionais da área de saúde e dos direitos humanos, o Projeto de Lei Nº 717/2003, criado no Estado do Rio de Janeiro pela Assembléia Legislativa, de autoria do deputado (evangélico) Edino Fonseca, que cria o "Programa de auxílio à pessoas que voluntariamente optarem pela mudança de orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade".

Para implementar o programa, o poder público estabelecerá convênios com instituições governamentais ou não governamentais, associações civis, religiosas ou profissionais liberais ou autônomos, com o intuito de "curar" a homossexualidade daqueles que assim o desejarem; ou seja, agora o seu dinheiro (dinheiro público e, portanto, pertencente a todo cidadão) poderá ser usado para esta finalidade.

De acordo com o parecer da Comissão de Saúde, assinado pelo deputado Samuel Malafaia (evangélico e engenheiro), "homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se complementarem e se procriarem. O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal".

Fora a crença religiosa do ilustre Deputado Samuel Malafaia, que competência profissional ele tem para poder julgar a homossexualidade como uma "anormalidade", uma "patologia" ou "uma distorção da natureza do ser humano normal"? Sob quais perspectivas éticas, médicas ou psicológicas, ele pode se basear para promover uma idéia que, em síntese, está calcada nos preceitos da moral cristã e de idéias caducas acerca do desejo sexual de muitos?

A Comissão de Constituição e Justiça através do parecer do Deputado Domingos Brazão, ainda arvorou-se no direito de dizer que "a posição do projeto é de relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais", visto que "só os homossexuais que quiserem mudar sua orientação sexual é que poderão ter acesso aos serviços, porém, no caso dos adolescentes, basta que seus pais desejem mudar a orientação sexual dos seus filhos".

A idéia é estapafúrdia. Primeiro, porque trata-se de um retrocesso em todas as conquistas adquiridas no plano dos direitos humanos, além das conquistas que tanto a medicina, a psicologia e a psicanálise se esforçaram para promover a partir do conhecimento científico ao longo dos anos; e finalmente também trata-se de uma volta a preconceitos que foram derrubados ao longo dos dois últimos séculos, para não dizer nos últimos 50 a 60 anos. Segundo porque cabe aqui questionar o por quê ainda torna-se imperativo em nossa cultura à lei da moral cristã, se está mais do que comprovado a naturalidade da maioria de nossos desejos sexuais e afetivos. Terceiro, porque com a idéia do projeto, deixa de considerar amores, fantasias, inspirações repentinas, como algo tão natural tanto na hetero quanto na homossexualidade, visto que, se homens e mulheres foram feitos para procriarem, porque eles "transam na cozinha, no elevador, nos estacionamentos, nos clubes de "suingue", na zona, de cinta-liga, colares de couro ou cueca de látex furada", conforme questiona o Psicanalista Contardo Calligaris, em artigo de mesmo título na Folha de São Paulo? Ou ainda, por que se homens e mulheres foram feitos para procriarem, assim como fazem os animais (que são regidos por instintos ao invés de desejos, fantasias e pulsões) eles praticam sexo oral, masturbação coletiva, sexo anal, são adeptos do sadomasoquismo, sexo em grupo, solitário ou com animais?

Se há algo que merece ser tratado na homossexualidade, é o seu mal-estar diante de uma sociedade que o(a) trata como alguém de menor valor explicitamente pelo tipo de afetividade e sexo que pratica.

Orientação sexual, também pode ser um conceito perigoso, visto que a ele está associado o termo "escolha sexual", que em nossa sociedade, é mal interpretado. Não existe nesse sentido, uma escolha diante de dois caminhos a serem seguidos, a uma decisão importante, entre um sim e um não, ou entre a escolha de uma refeição diante de um cardápio variado, simplesmente porque ninguém escolhe ser hetero, homo, bi ou qualquer outra natureza sexual que exista nos dias de hoje, como se, com isso, naturalizássemos uma determinada "identidade sexual". Portanto, não existe uma escolha entre ser hetero ou não, ser gay ou não.

Setores do movimento gay tem acolhido com bons olhos a idéia de uma naturalização genética da homossexualidade, ou a idéia de que haja "homossexualidade" nos animais, como se com isso, a natureza fosse o caminho encontrado para afirmar a normalidade de sua existência e de suas práticas afetivas e sexuais (sempre insisto nisso), daí, por que não aceitá-la?

A idéia é pouco provável, visto que não existem pesquisas suficientemente fortes que comprovem seus resultados, e o que pode ser usado como argumento a favor da naturalização, pode muito bem ser usado como contra argumento para um ideal de cura: um "gen" pode ser modificado no futuro, face aos avanços das pesquisas genéticas, e se existe uma homossexualidade na natureza dos animais, estaria mais do que comprovado que o instinto pode muito bem se tornar uma "aberração da natureza", já que é notório que os fundamentos procriativos dos animais é explicitamente utilizado nos argumentos daqueles que promoveram a resolução da Assembléia Legislativa (homens e mulheres foram concebidos para se procriarem), visto que o ser humano é o único "animal superior" que possui desejos e fantasias sexuais, podendo inclusive sentir prazer na ausência de qualquer outro ser humano.

Se a cura da homossexualidade é proposta pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, ela está sendo posta a serviço não só do campo médico e científico que nos seus primórdios, associou homossexualidade à idéia de doença, degenerescência, anormalidade e patologia, como também do campo religioso cristão, que vê a homossexualidade sob a lupa de valores morais baseados nas doutrinas do cristianismo.

Portanto, a re-orientação sexual de homossexuais através do projeto do Deputado Edino Fonseca nada mais pode servir as proposições fundamentais de movimentos religiosos que ainda querem "demonizar" ou "exorcizar" a sexualidade de seres cuja medicina, psicologia e psicanálise, repito, tratou insistentemente de naturalizar.

A homossexualidade, assim como a heterossexualidade, é parte integrante de nossa subjetividade. O que resta, são preconceitos impostos pela cultura, pela sociedade, por regras morais, por crenças historicamente criadas que continuamente precisam ser "exorcizadas" das mentalidades de pessoas como as que promoveram a idéia do referido projeto.

Para finalizar, uma dica: se você deseja manifestar a sua indignação ao Projeto de Lei Nº 717/2003 e ajudar a derrubá-lo, o Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protestos, através do site www.clam.org.br. Todo aquele que se unir a essa luta, está fazendo uma escolha humanamente mais útil.

Sérgio Gomes é Psicólogo Clinico, Especialista em Sexualidade Humana e Especialista em Direitos Humanos. Email:
sergiogsilva1@yahoo.com.br

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