Atitude LGBT Social

terça-feira, 8 de março de 2011

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Portal Ciência & Vida - Filosofia, História, Psicologia e Sociologia - Editora Escala.
O sexo inventado
Na direção contrária às ciências naturais e ao pensamento comum, apresentamos a teoria antropológica sobre a questão de gênero, nas quais o feminino e o masculino são sobretudo construções sociais
Maysa Rodrigues*


Até esse ponto, deve ser coerente dizer que a teoria do autor implica em uma profunda crítica ao sentido da ciência, uma vez que nega seu aspecto de saber absoluto, neutro e apolítico, enfatizando a questão do poder que envolve diretamente todo o conhecimento que existe. Para essa concepção, ciência não é um aparato de técnicas imparciais, que descobre a realidade externa, imutável e objetiva. Muito pelo contrário, o argumento de Foucault sugere que a realidade que nos aparece como objetiva é, na verdade, construída por um saber inundado de poder.
Nesse mesmo sentido, a medicina seria um saber institucionalizado que implica em um controle dos corpos dos indivíduos na mesma medida em que impõe o sentido desses corpos. Assim, podemos começar a pensar na natureza supostamente diferente dos corpos femininos e masculinos como uma ideia longe de ser natural.
Para ilustrar a concepção foucaultiana de ciência, Heloisa Buarque de Almeida explica como ao longo da história da medicina diversos aspectos do corpo humano foram responsabilizados por determinados comportamentos. "No final do século XVIII, como mostra a autora Magali Engel, o comportamento feminino é imputado aos ovários. Quando a mulher é vista como tendo alguma perturbação mental, como louca ou como promíscua, o protocolo é tirar os ovários, mesmo que aparentemente estivessem saudáveis".
Depois, conforme completa a antropóloga, o útero surgiria como o maior culpado pelos problemas emocionais, e a forma de tratamento mais comum para os chamados desvios mentais se tornaria a extirpação desse órgão. "Já por volta dos anos 1940-1950, ganha proeminência a ideia dos hormônios. Aparece na medicina que o comportamento chamado masculino é gerado pela testosterona, que passa a explicar a virilidade, tanto do ponto de vista da potência sexual, quanto de um comportamento agressivo e dominador dos homens. Essa visão também explica o comportamento mais afetivo e carinhoso das mulheres como sendo algo gerado pelos hormônios", desenvolve.
Hoje em dia, nem mais os hormônios e tão pouco os órgãos reprodutivos: a força explicativa da ciência estaria na ideia dos genes, que passa a ser a causa maior da diferença sexual. "Os médicos indicam aspectos biológicos como determinantes do comportamento, mas esse lugar da natureza parece estar sempre mudando", finaliza a antropóloga.
Na mesma trilha de Foucault, Thomas Lacqueur dá forma ao argumento do filósofo. Em seu livro Inventando o Sexo, o autor, a partir de um levantamento de manuais de medicina e de outros escritos do campo afirma que até meados do século XVIII havia uma concepção de sexo único, "no qual homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor vital ao longo de um eixo cuja causa final era masculina."
Assim, segundo esse modelo que imperou até não muito tempo atrás, homens e mulheres não eram considerados fisicamente diferentes. Sua diferença era apenas em grau (homens tinham maior calor vital e maior perfeição). Essa concepção se manifestava nos manuais de medicina de tal maneira que não era descrita nenhuma forma de distinção anatômica entre os sexos. A convergência também se exprimia no fato de haver uma mesma nomenclatura para os órgãos que hoje são considerados específicos de cada um dos sexos. Lacquer afirma que "durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens", com a diferença de que a genitália feminina ficava dentro do corpo, enquanto que a masculina era externa. Os lábios vaginais eram considerados equivalentes ao prepúcio masculino, o útero era a mesma coisa que o escroto e os ovários seriam uma transposição dos testículos.
Impressiona na descrição de Lacqueur que essa maneira de conceber os corpos como iguais prevaleceu à prática da dissecação, evidenciando que não se tratava de um conhecimento baseado na impossibilidade de ser enxergar os órgãos, mas sim em uma forma de olhar e de interpretar o corpo diferente da que impera atualmente.
Também bastante revelador desse modelo de sexo único é a ideia de que sendo a diferença entre homens e mulheres apenas de grau e não de natureza, poderia haver uma mudança de sexo: "as meninas podiam tornar-se meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder a rigidez e definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a efeminação". Lacqueur apresenta um relato médico do século XVI que atesta para a possibilidade de se transitar entre os sexos: uma pessoa identificada até então inquestionavelmente como menina passa a apresentar um "pênis e um escroto externo".
O caso que seria explicado hoje como um exemplo de intersexo (ou seja, de um indivíduo que possui o aparelho reprodutor ambíguo e que pode desenvolver novos órgãos na adolescência) foi considerado, naquela época, como a prova da possibilidade de mudança sexual. Essa anedota evidencia que, diferente do que normalmente pensamos, não é a simples visão dos corpos que condiciona a teorização que se fará sobre eles posteriormente; é o modelo corrente na sociedade que determinará a imagem que nossos olhos farão do que está em nossa frente.

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